A Bandeira Brasileira e o candidato ao serviço militar obrigatório
- Antonio Mário Bastos

- 7 de set.
- 6 min de leitura
A Bandeira Brasileira e o candidato ao serviço militar obrigatório
"Brava gente brasileira
Longe vá, temor servil
Ou ficar a Pátria livre
Ou morrer pelo Brasil
Ou ficar a Pátria livre
Ou morrer pelo Brasil"
Hino da Independência do Brasil [Estribilho]
Estávamos no meado da década de 60, principiar da década de 70 do século passado. Os ensinamentos nas escolas públicas primavam pelo nacionalismo, amor à pátria, religião, respeito à família e ao próximo e bons modos usuais, de modo que, a cada dia da semana, fazíamos orações ou cantávamos hinos no pátio da velha escola, antes de adentrarmos a sala de aula.
Era um ritual invariável, não havia mudanças, os corpos diretivo e docente não transigiam, por óbvio e, porque não dizer, por estrita obediência aos ditames da administração central do país ou do órgão de educação do estado federado.
Nos dias de terça-feira, orações — estas exclusivamente atinentes ao catolicismo: pai nosso, ave-maria; nas quartas-feiras, hinos: nacional, da independência, à bandeira, ao dois de julho, canção do marinheiro, canção do exército, cada qual separadamente e um por dia.
Nas quintas-feiras passávamos pela chamada revista, isto já em sala de aula: eram verificadas as partes de higiene — unhas, ouvidos, cabelos, etc, com vistas a identificar possíveis sujeiras e ou pediculose da cabeça. Identificada qualquer das impurezas, o aluno recebia, ao sair da aula, um bilhete cuidadosamente dobrado, com o apontamento do encontrado, para ser entregue aos pais ou responsáveis. Felizmente naquele tempo não conhecíamos o tal do bulling e tudo era deixado por um quilo, ninguém sequer fazia comentários sobre o colega, o respeito e solidariedade eram exigidos e cumpridos.
Nas segundas e sextas-feiras, éramos livres daquele ritual. A primeira por ser o retorno do descanso e a última dedicada às brincadeiras, torneios, etc.
Naquela escola de curso primário — hoje a denominação é ensino fundamental, por exigência normativa — éramos muitos pirralhos, todos se conheciam, jogavam bola, participavam de brincadeiras de cantiga de roda, etc. e tal, e ficavam do primeiro ao quinto ano primários, idades entre 7 e 12 anos, normalmente.
Chegado ao quinto ano primário, vinham os preparativos para o exame de admissão ao ginásio e já tínhamos aulas mais preparadas para um futuro que nos esperava. Tínhamos aula das matérias obrigatórias, língua portuguesa, matemática, ciências, geografia e história, todas focadas para o exame de admissão ao qual nos submeteríamos, sempre no mês de dezembro e, se não lográssemos êxito, na segunda chamada que ocorria em fevereiro do ano seguinte.
Muitos colegas não lograram êxito no exame de admissão e foram tentar a vida nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro ou mesmo Salvador. Outros seguiram estudando no Ginásio, recém fundado, acolhendo alunos do Grupo Escolar do lugar e de municípios circunvizinhos, afinal fora o primeiro ginásio fundado naquelas cercanias e num raio de, ao menos, cinquenta quilômetros.
Antonio e Cassimiro foram estudar no Ginásio, eram primos carnais, iam e vinham para a escola sempre juntos. Suas casas ficavam numa povoação distante mais ou menos a uma légua da cidade.
Nas aulas de Instrução Moral e Cívica, o professor Cunegundes, oficial remanescente dos quadros do Exército Brasileiro, fazia questão de mostrar aos alunos que todos deviam amor e respeito à pátria e aos seus símbolos.
Numa dessas aulas o professor levou a Bandeira Brasileira, finamente dobrada, explicou tudo sobre ela, do respeito, do amor, da forma de hastear, da forma de descartar — quando, onde e por quem — além da forma de nos postarmos diante dela.
Chamou à frente da sua mesa o aluno Antonio. Fez-lhe algumas perguntas sobre o discorrido na aula e ficou encantado com as respostas certas e seguras do aluno.
— Vocês estão vendo?! O Antonio sabe muito sobre nossa Bandeira e vocês se espelhem nele para amar nossa Bandeira e nossa Pátria.
— Antonio, nunca esqueça disso: a Bandeira é sua mãe, como também é a nossa Pátria!
Cassimiro, tratava Antonio carinhosamente de Toinho, apelido de família, como todos na sala de aula assim também o fazia.
Na saída da sala de aula Cassimiro chamou Toinho num canto e disse-lhe:
— primo, eu agora tenho é duas tias; a sua mãe, tia Leocádia, e, também, a Bandeira brasileira; ela não é sua mãe?!
Aquela conversa ficou gravada na mente de Cassimiro e, com certeza o assunto transitou na casa dos dois, para conhecimento dos seus pais.
Cassimiro e Toinho concluíram a quarta série de Ginásio e foram tentar a vida em Salvador. Primeiro iriam trabalhar, depois prestar o exame vestibular. Filhos de famílias pobres do sertão, miravam, por necessidade, empregos para seus sustentos e para ajudarem suas famílias.
Ocorre que ambos chegaram em Salvador no ano em que iriam completar dezoito anos, um deles já completos e o outro logo após um ou dois meses de estadia na Capital. Foram morar no subúrbio, em casa de uma tia, casada com um militar que lhes alertara sobre a necessidade de estarem de posse de documento militar, o Certificado de Alistamento, no mínimo .
— Olha só rapazes, sem o alistamento militar vocês não vão conseguir um emprego de carteira assinada de jeito nenhum. É uma exigência que nenhuma firma descumpre. Amanhã vou levar vocês para se alistarem. E assim o fez.
Retratos no lambe-lambe, fila na repartição e, ao final do dia, tomaram o trem do subúrbio e chegaram em casa devidamente documentados.

Chegado o tempo da apresentação para a incorporação e início do serviço militar, as três Forças avaliam o alistado e cada um passa por exames médico e de conhecimento, etc.
Cassimiro e Toinho escolheram se apresentar ao Exército Brasileiro, era tudo na terra, segundo eles.
— Você tá doido Cassimiro, num tá vendo que num vou me apresentar na Marinha, eu mal sei nadar no riacho e mesmo assim atracado num tronco de umburana, disse Toinho com os olhos arregalados.
— Quer ver coisa é cá Toinho, disse Cassimiro. E eu que nunca nem sequer saltei dirriba dum pé de imbuzeiro, vou lá eu me apresentar na Aeronáutica nada; lá é tudo pelos ares. Deus que me livre disso.
Decididos estavam e foram se apresentar no Exército mesmo.
O primeiro a entrar, por conta da ordem alfabética foi Toinho — Antonio, ali não se tratava ninguém por apelido — que, um pouco temeroso, olhava pra trás e de soslaio, para as vistas alcançarem o seu primo Cassimiro.
— Seu nome, data de nascimento, naturalidade, grau de instrução, tem alguma profissão....
— Profissão, profissão mesmo não tenho, mas sei trabalhar em trator arando e gradeando terras, lá na Fazenda Cruz de seo Zé Moreira e seo Pedrito de Cazé, com o trator de de seo Zé Moreira, marca Danhorse que veio da Checoslováquia.
Muito bem, você é craque rapaz! Agora ande, se apresente lá na baia 70, tire a roupa e aguarde que você vai ser medido e examinado.
No retorno, todo escabriado, Toinho olhou pra Cassemiro e franziu a testa, indicando que os exames eram minuciosos.
— Vamos lá, Sr Antonio, vou lhe fazer umas perguntas e quero ter as respostas sem muito lenga-lenga. Não são perguntas tão difíceis assim.
Pergunta vai, pergunta vem, todas respondidas a contento e no tempo certo, o examinador mostrou a Toinho o Brasão da República.

— Sabe me dizer o que é isto?
— Sei sim sinhô, aprendi na aula do professor Cunegundes, é o Brasão da República Federativa do Brasil.
Pode ir e volte aqui dentro de quinze dias para saber se você foi aceito para compor as fileiras do Exército Brasileiro.
Chegou a vez de Cassimiro.
As mesmas perguntas iniciais e a ordem de dirigir-se à tenda de exames.
Começou a avaliação de Cassimiro.
— Você sabe datilografia?
— Sei sim sinhô e ainda uso todos os dedos das mãos, não sou catador de milho não.
— Não lhe perguntei sobre sua habilidade, mas tudo bem.
A Bandeira Brasileira estava hasteada num pedestal. O examinador, pegando numa das pontas e deixando-a bem aberta e visível no seu todo, pergunta a Cassimiro.

— Você sabe quem é esta?
— Sei sim sinhô. É minha tia, mãe de Toinho.
Foi um fuzuê dos diabos. O examinador tomou aquilo como grande ofensa ao símbolo nacional, se apresentou ao oficial de dia e historiou o acontecido. Vieram ao encontro de Cassimiro e levaram-no quartel adentro.
O oficial, cara fechada e espantado com aquela resposta, vira-se pra Cassimiro e lhe diz.
— Ô meu rapaz, me conte aí esta história de você está desrespeitando a nossa Bandeira, o maior símbolo da nação; onde diabos você encontrou esta definição de que a Bandeira é sua tia.
— Olha meu sinhô, aprendi na aula de Instrução Moral e Cívica do professor Cunegundes. Ele disse lá, pra todo mundo ver e escutar, que a Bandeira Brasileira é mãe de Toinho, como também é a nossa Pátria. Toinho é meu primo carnal, e, se a Bandeira é mãe de Toinho claro que é minha tia.
Desnecessário dizer que Cassimiro estaria fadado à reprovação.
— Eu devia deixar você servir ao Exército para lhe ensinar o que são os símbolos nacionais e lhe ensinar como respeita-los, mas é melhor mesmo mandar você ir embora para não dar dor de cabeça nem a mim nem a minha tropa.
Vá para casa e volte daqui a quinze dias para jurar a Bandeira e receber seu certificado de dispensa de incorporação.
Tonho do Paiaiá, celebrando o ducentésimo terceiro ano da Independência do Brasil





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